quarta-feira, dezembro 29, 2010

Viagem programada para o Recife. Assim que der, de lá ou quando voltar, voltaremos às atividades neste humilde blogue. Fé e torcida porque o caso é sério. Vou fazer uma revascularização. Medo, muito medo, mas confiando que tudo dará certo. Na pior das hipóteses, estarei numa das cidades que mais amo. Até a volta.

quinta-feira, dezembro 23, 2010

Carta a Papai Noel

Caro Papai Noel:

Esta é a primeira vez que lhe escrevo. Sei que quando criança, sempre procurei me comportar bem. Não fui lá um aluno dedicado nem um filho de encher os olhos de minha mãe, mas também nunca recebi sua visita, a não ser aquela vez que o senhor me deixou um tratorzinho de plástico. Gostei muito, apesar de que o senhor deveria saber que eu gostaria mesmo de receber um kit de Xerife, com revólver, chapéu, cartucheira; e que o revólver tinha que ser de espoleta, porque o som de tiro ficaria mais real, como nos filmes do Daniel Boone.

Dizem por aqui que o senhor não existe. Não acredito em gente sem ilusões. São vazios demais para que eu os leve em consideração. Se o senhor não existe, porque tem tantos nomes? Seja como for, a Lapônia existe, então, o senhor deve morar lá mesmo e pode realizar os sonhos.

Quando estava decidido a escrever minha carta deste ano, pensei que o senhor só atende a pedidos de coisas materiais e, apesar de não ser rico, não ando sentindo falta de nada destas coisas e achei que não haveria mal nenhum em pedir um rim. Sim, estou muito cansado das sessões de hemodiálise que me deixam fraco e infrutífero, sem paciência e ânimo para realizar as tarefas que, parece, foram redobradas desde junho de 2006. Na verdade, viver sobre essa linha tão fina entre vida e morte me deixa assustado e também não suporto mais ver as pessoas que são as companhias nesta jornada partirem de forma tão abrupta: quando tento me reconfortar com a partida de um outro já vai e vou ficando cada vez mais aterrorizado.

Enfim, mesmo sabendo que seria complicado ganhar o presente, acreditei que não havia porque temer pedir. Mas minha vida tá parecendo novela do Sylvio de Abreu: todo capítulo uma tragédia a me enlouquecer e daí a única resolução para o Ano Novo que ouvi foi a de um médico me prometendo que começará 2011 realizando uma cirurgia no meu coração, uma coisa que eles falam, com tranquilidade e certa frieza: "cirurgia de peito aberto".

Nossa, Papai Noel, fiquei com tanto medo que nem o Diazepam ajuda a controlar! Mas irei em frente, não há outra alternativa.

Então, ao invés do rim, gostaria que o senhor me desse um alívio e forças para suportar mais esta dificuldade. Sei que o senhor não é Deus. Dizem que o senhor é pagão. Não sei o que isto quer dizer. Só acredito que o senhor deve ter alguma intimidade com Ele, pois o senhor traz alegria para muitos e foi amar a todos que o Filho d'Ele ensinou a fazer. Entendo que tenho que ser bom com todos e não sei fazer isto. Amo com maior facilidade a Clara que o Fred, mas eles não vão ganhar presentes, eu sei. Ando agindo um pouco melhor que eles, sendo comportado e calmo na medida do possível.

Bem, Papai Noel, é em cima da hora que escrevo, mas perdoe-me. Só hoje pude ter consciência que era necessário pedir o que me faz falta senão nunca receberia nada.

Obrigado e bom trabalho na noite de sexta.

James Fernandes

P.S.: O senhor sabe onde moro, não precisa do endereço.


domingo, dezembro 05, 2010

Minha meia dúzia de 10 seguidores,

Tõ muito enrolado com tanta coisa escangalhada por aqui. Assim que der, volto a escrever. Perdoem a ausência.

quinta-feira, dezembro 02, 2010

Sorôco, sua mãe, sua filha

Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m.

As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo – o movimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda-chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia t razer as duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.

A hora era de muito sol – o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. O borco bojudo do telhadilho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe.

O Agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço. – "Vai ver se botaram água fresca no carro..." – ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate. Alguém deu aviso: – "Eles vêm!... " Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas: as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo, com o trazer de comitiva.

Aí, paravam. A filha – a moça – tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras – o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papeis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas – virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam.

Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles transmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco – para não parecer pouco caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. Ele respondia: – "Deus vos pague essa despesa... "

O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco agüentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.

De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da escadinha do carro. – "Ela não faz nada, seo Agente..." – a voz de Sorôco estava muito branda: – "Ela não acode, quando a gente chama..." A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo – um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.

Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço, sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder entender. Nessa diligência, os que iam com elas, por bem-fazer, na viagem comprida, eram o Nenêgo, despachado e animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautela, estes serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que não iam fazer míngua, os embrulhos de pão. Por derradeiro, o Nenêgo ainda se apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem. Elas não haviam de dar trabalhos.

Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorcôo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois.

Sorôco. Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre. Sorôco nâo esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo – o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falaram: – "O mundo esta dessa forma... " Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Sorôco.

Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, pra ir-s'embora. Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta.

Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido – ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.

A gente se esfriou, se afundou – um instantâneo. A gente... E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.

A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.

Guimarães Rosa