sábado, outubro 23, 2010

Amor sem grades

Vez ou outra sinto como se, de repente, eu não soubesse ou não pudesse amar a filha Marina, pois sou o tipo de pai pouco possessivo. Ela mesma já me questionou a normalidade:



- Todos os pais das amigas brigam porque elas querem sair; você briga pra eu sair. Não te entendo.


Nem eu compreendo.


Quando tinha a idade dela, 15 anos, ganhei de um irmão a cópia da chave de casa e nunca mais soube o que era ficar em casa à noite ou chegar cedo. Tinha ganhado o passaporte para a liberdade, o inalienável direito de ir e vir.


E foram nessas saídas que comecei a aprender sobre política, sobre música, sobre amizade. Comecei a enxergar o mundo.


Era um tempo, óbvio, em que violência era algo que ouvia muito de longe, não batia à porta com tanta freqüência. Como se estivesse protegido de todos os males, abusava das caminhadas na madrugada a caminho de casa, sem preocupações. Tinha medo, nesse período, do sobrenatural. Das pessoas vivas, não acreditava que me fizessem algum dano.


Claro que hoje a história é outra, mas sou decidido a não construir um presídio para os filhos. Aprender sobre a vida só comigo é trilhar o mesmo caminho e seria muita pretensão achar que sei bem distinguir certo e errado.


Guardar os filhos das doenças do mundo é tentar prever o imprevisível. Ainda adolescente fui assaltado dentro de casa. Nunca na rua. Então, qual era a segurança que minha casa dava que eu não encontrasse nas ruas?


Respeito muito quem ama aos filhos dessa maneira superprotetora; não o faço. Quero-os livres, aprendendo a lidar com as intempéries. Acho que é mais amor.

sexta-feira, outubro 15, 2010

De ônibus 2

O que me levaria a uma viagem de ônibus, num calor de quase quarenta graus, hoje pela manhã? Acho que quis testar se suportaria sem cambalear, sem desmaios e afins. Fui e sobrevivi, por pouco, mas consegui. Ao chegar no ponto, me deparei com a enormidade de pessoas aguardando - não me afligi. Sempre há a possibilidade de ouvir histórias interessantes. Não houveram.

Curioso observador, reparo na moça com jeans azul e camiseta verde, alça do sutiã à mostra (quem se importa com isto no calor quase de inferno que anda fazendo no Acre). Ela movimenta o cabelo, levanta, solta, suspira, me lança um olhar desesperado como a dizer: "não suporto mais"; abaixa a cabeça sobre o vidro que separa a cabine do motorista e percebo que chega ao fim de suas forças. Ela luta, bate os pés, suspira, me olha novamente - o mesmo olhar desesperado pedindo cumplicidade. Falamos sem mover os lábios sobre o quão insuportável está a viagem. Estamos em lados opostos à catraca.

Um braço, incrivelmente frio, me toca. A  moça usa uniforme de uma empresa. Afasto - ela pode pensar que estou me aproveitando para roçar-lhe o braço. Ela o faz novamente. Me fala sem palavras: "posso comentar o que quiser com você, mas não farei". Não insisto. Minha paixão está direcionada à moça da frente aflita de calor, que me olha uma terceira vez. Pensa ela, certamente, que estou encantado com sua beleza. Engano: quero a cumplicidade dela no sofrimento.

Uma aluna toma a iniciativa de abrir caminho sem pedir licença. Corpo magro, desvia-se dos demais e atinge o final do ônibus. É engolida pela multidão. Não a verei mais durante a viagem,

Gosto da idéia de que mais alguém acumulou uma história em que serei personagem...

segunda-feira, outubro 11, 2010

Que título poderia eu dar?

Há coisas que jamais compreenderei: por que pessoas que amamos têm que morrer; por que não ficamos felizes todos os dias; por que nos sentimos culpados mesmo sabendo que não somos responsáveis por todos os males que se abatem sobre nossos queridos; por que os outubros continuam vindo e indo indiferentes a nossa vontade.

Foi num janeiro que tudo começou. Cheguei em casa para o almoço em um dia normal de trabalho, num tempo em que ainda conseguia ir almoçar em casa, sem problemas de trânsito, sem correrias, sem angústias. Não havia uma mesa digna para que sentássemos e fizéssemos a refeição, mas era em paz que nos alimentávamos, sem sobressaltos. Foi abaixo de um prato que aquela menina que, aos dezenove anos casara comigo me perguntando se poderíamos esperar uns dois anos para termos um filho, me entregou o resutado do exame: estava grávida. Confesso não recordar se havia alegria em seu olhar. Havia esperança no meu e a dúvida: saberei ser pai?

Conversamos como conversam os recém-casados, tomados de espanto, mas sabedores que aquela era a sequência da vida: seríamos pais, independentemente de não termos cumprido o compromisso de aguardar o tempo estipulado. Bastava saber que haveria uma nova vida ali.

De imediato, pensei e falei que seria uma menina. Como saber, se o exame havia sido feito nesta mesma manhã? Eu sabia e pronto e me dispus a escolher um nome. Não houve preparação alguma, a escolha era tão absurda àquela altura quanto imaginar que havia um ser ali, sendo gerado.

Após o almoço, folheei uma revista enquanto pensava como a notícia chegaria ao restante da família, se haveria alegria em saber ou se a preocupação seria maior. Deparo-me, em folha dupla com o nome ISABELLA. Uma reportagem sobre Isabella Rosselinni. Achei o nome bonito porque saia de uma insuportável mania de "Isabele". O nome chegara pronto. Isabella somente, nada de nome composto, nada de invencionices, bastavam os dos "l" que tinha decidido para que a estranheza se completasse.

Isabella nasceu em 11 de outubro de 1991 e sobreviveu à imperícia de um médico até o dia 15 de outubro. A saudade e a lembrança dela, me perseguem, ainda que me tenha habituado a não comentar até hoje e pelos, espero, longos anos que ainda me restam.

(A título de informação, sempre "adivinhei" o sexo dos meus filhos ainda no início da gravidez.)

domingo, outubro 10, 2010

Os Saltimbancos do GPT

Há um longo tempo não me dispunha a ir ao teatro; fui ontem. Não pela novidade do espetáculo - uma remontagem de "Os Saltimbancos", mas pela vontade de ouvir uma mensagem que faz sentindo ainda hoje: "todos juntos somos fortes".

À apresentação do GPT, em comemoração aos seus 20 anos, fui esperando ver a mesmice das dezenas de montagens que assisti. Felizmente estava enganado: Dinho Gonçalves soube mover a luz. 

Teatro lotado, muitas crianças e um bando de adultos em êxtase com o espetáculo, foi o que vi. Muito mais que a peça, assisti ao renascimento de sonhos e esperanças, aos olhos voltados a projetos destemidos. Creio que os assuntos da noite de ontem nos bares foi esse espetáculo.

Críticas negativas certamente virão, não serão minhas. Na simplicidade da montagem, com recursos escassos, para um público que não tem por hábito ir ao teatro,  gargalhadas e reflexões foram, mais uma vez, repassadas. Há que se ter esperança que a nova geração que estava lá fará diferente do que fomos capazes.

O destaque dessa montagem, em opinião de mamulengo que sou, saiu do pelo luzidio da "gata", toda preta, para uma assustada "galinha" que fez a diferença no palco e encantou a platéia. Vi, em meio à escuridão, os olhos de Marina (a filha) brilharem aos 15 anos de idade como se houvesse descoberto um mundo novo. Há tempos, não via tanta felicidade nela e, só por isto, já me agrada ter, mesmo me sentindo mal fisicamente, ter ido ao Teatro de Arena do SESC.

[Todos os sábados e domingos de outubro, a peça estará sendo levada; não deixe de (re)ver]

Pra final de conversa

Nasci aqui num cantinho do Brasil chamado Acre, que faz divisa com Bolívia e Peru. É um lugar no qual se tem a impressão que, a qualquer momento, poderá cair do mapa. Mas não cai.  Caiu ontem, três de outubro, no mar da desilusão, da desinformação; no mar da busca desesperada por ser ouvido. Deu vitória ao candidato que não era apoiado pelo governo local, candidato que não pôs os pés no Acre - apesar de dizer o contrário, que não tem a menor sintonia com suas idéias que, aliás, não parecem encontrar apoio nem em seu próprio partido. Não deu vitória nem à candidata nascida em suas terras: nem por "bairrismo" votou nela.

Alguma coisa tem que estar errada. Alguma queixa a população tem. Algum desejo de ser entendida habita em seu coração. Ouvirão, os políticos locais, essa mensagem ou simplesmente farão como sempre: a culpa é do povo que não sabe votar!

sábado, outubro 02, 2010

Marina de todas as cores

Por volta dos anos 1982-83 tive contato pela primeira vez com a política. Nesse momento, com a estudantil e a partidária, ao mesmo tempo. Era período que se engatinhava em busca do fim do regime ditatorial, período de partidos clandestinos, propostas de socialismo e modelos que, àquela altura, eram considerados exemplos a serem seguidos. De lados claramente opostos, com pontos que encontravam certa intersecção, estavam dois partidos, que lembro, citavam a Albânia como paraíso socialista e, de outro, Cuba. Esse era o resumo que minha cabeça de menino interessado em coisas menores conseguia atingir.

Até hoje, por falta de maior interesse, não faço a menor idéia de onde seria a famosa Albânia e Cuba, evidentemente, que continua sendo um mau exemplo a ser seguido, tem maior relevância em minhas memórias.


Não tive e, ainda que tivesse não o faria, complementação aprofundada sobre suas diferenças administrativas, seus pontos de vista, seus ícones, seus ideais de sociedade igualitária. Muito disto me interessava assim como pouco me tomava à paixão.



Foto da Folha de São Paulo
Foi em meio a estas pequenas disputas de pontos-de-vista que me vi envolvido com pessoas que hoje ocupam o poder estabelecido na forma da legislação do País; que estavam dispostas e preparando-se sempre para um confronto que poderia ir além das idéias e atingir o campo das disputas armadas.


Não era minha função entender a fundo nenhuma destas questões até então. Cabia a mim, ajudar a preparar um grupo que estivesse pronto para propor causas diferentes quando o momento certo chegasse. Foi assim que conheci os amigos que até hoje fazem parte do meu pequeno círculo de amizades: Edson, Natal, Fran, Anna, Nonato, Tania, Jair, Arimatéia, Evandilson e outros tantos que a memória me trai.

Esta mesma época foi a de conhecimento de Marina Silva, Binho Marques, Marcos Afonso, Carioca, Cardoso e, mais uma vez me trai a memória ao esconder tantos outros nomes, mas que se encontram fazendo a política partidária, comandando administrativamente o estado do Acre. Alguns outros surgiriam nos anos finais de 1980.


Dez anos depois, por decisões que de maneira alguma compreendo, uma terceira pessoa foi colocada sobre o cume da política acreana, sendo eleito prefeito da capital acreana para, em seguida, tornar-se governador. O sonho parecia tornar-se realidade. Finalmente, teríamos as possibilidades concretas de transformar as palavras em ações. Era chegado o momento de fazer valer o que se planejara por longos anos, em infindáveis reuniões de estudo.


Seria injusto de minha parte dizer que não aconteceram avanços, melhorias físicas das cidades, melhoria no respeito aos servidores públicos, abertura de possibilidades de crescimento comercial e, agora, propõe-se a “industrialização do Acre”.


Lembro de certa vez ter ouvido de Marina Silva – e não tenho a pretensão que ela lembre nem que leia tal texto – que “tínhamos que aprender que nem todas as pessoas podem ter condicionador de ar, pois o meio-ambiente será destruído mais ainda”. É esta frase que não me sai da cabeça hoje, véspera da eleição para presidente da República em que, em meus sonhos mais absurdos jamais poderia imaginar aquela menina negra, magricela e um tanto “gasguita”, que já falava e as veias saltavam-lhe no pescoço, estivesse disputando de maneira corajosa e eficiente uma corrida presidencial.

Imagino, ainda que distante, o desafio que enfrenta essa mulher: lutar para mostrar que seu discurso é maior que o da preservação do meio-ambiente. O quê tem de suportar para mostrar que todas as ações estão vinculadas a este mesmo meio-ambiente – que, aliás, deveríamos passar a chamar só de ambiente. É o nosso ambiente de moradia, ainda que você concorde com Marina em sua fé em vida após esta. Se for assim que você pensa, sabe-se “cidadão do Céu”, mas morando na Terra, por enquanto. E, se você é visitante aqui, se este planeta te hospeda enquanto chega a hora de voltar para casa, não pode querer destruir a decoração da casa.


Há quem grite a plenos pulmões que “ela é da selva”; não é. É do campo e da cidade; é do Brasil e do Mundo; da Terra e do Céu. O mundo de Marina não é azul, nem rosa, nem verde. Nele, todas as cores são permitidas e é lá, no final desse arco-íris que reside o pote de ouro.